sexta-feira, 25 de março de 2016

Ampla defesa e contraditório na execução fiscal



                         Na ordem jurídica nada mais sagrado existe do que o direito de defesa, sendo seu exercício pleno condição até para a validade da condenação. Consiste ele na obrigatoriedade de se assegurar ao suposto infrator à concreta ciência das cominações que lhe são atribuídas, bem como de tornar efetiva a possibilidade de contestá-las, uma a uma, condição elevada à cláusula pétrea nos termos dos incisos XXXV e LV da Constituição Federal de 1988.
                        Como a liberdade e a igualdade são valores fundamentais em nossa sociedade, após a Constituição Federal de 1988, impõe-se que, em qualquer espécie de julgamento, a ampla defesa e igualdade são princípios que constituem fundamentos de legalidade do veredicto a ser proferido, o que inclui a execução fiscal, razão pela qual entendemos que o artigo 16 da Lei nº 6.830, de 22 de setembro de 1980 não foi recepcionado pela nova ordem constitucional, o que o espírito da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015, porque, no conceito de contraditório repousa a segurança jurídica como ensina Humberto Theodoro Junior ([1]), considerando que o principal fundamento da comparticipação no processo é o contraditório que garante a sua fluência normal e a não surpresa:
Art. 16                       O executado oferecerá embargos, no prazo de 30 (trinta) dias, contados:
I                      do depósito;
II                    da juntada da prova da fiança bancária ou do seguro garantia;
III                   da intimação da penhora.
§ 1º                 Não são admissíveis embargos do executado antes de garantida a execução.
Nesse sentido, o princípio do contraditório receberia uma nova significação, passando a ser entendido como direito de participação na construção do provimento, sob a forma de uma garantia processual de influência e não surpresa para a formação das decisões”.
                        À época o legislador ordinário deu à CDA – Certidão de Dívida Ativa um status, uma garantia que não mais lhe pertence, porque, “para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias”, de que trata o preâmbulo da Constituição Federal é necessário paridade dialética e legal.
                        Instrumentos consagrados pela ordem constitucional e elevados à dignidade de norma reitora que assegura o contraditório não só nos julgamentos criminais, mas, evidente que também em outras esferas, inclusive nas ações de Execução Fiscal promovidas pelo Estado, de forma que, a não se exorbitarem os privilégios de que gozam os créditos fazendários, a Súmula Vinculante nº 28 já estabeleceu o consenso de que “qualquer depósito obsta o acesso à justiça”, tendo prevalecido à proposta de que ([2]):
·                   É inconstitucional a exigência de depósito prévio como requisito de admissibilidade de ação judicial na qual se pretenda discutir a exigibilidade de crédito tributário.
                        Há no direito brasileiro, nas esferas do direito penal; trabalhista; consumidor     e  tributário consecutivamente quatro hipóteses onde o agente é protegido em razão de hipossuficiência ([3]): no direito penal o “in dubio pro reo”; no direito trabalhista o “in dubio pro miseris”; no direito do consumidor o “inverso onus evidential”, conforme o inciso VIII do artigo 6º da Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990, todas regularmente aplicadas pelos Tribunais. No direito tributário teríamos o princípio do “in dubio pro arpinis purgantibus” que remete ao artigo 112 da Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966, onde, em caso de dúvida interpretar-se-ia de forma mais favorável ao taxpayer[4], mas, a Lei de Execução Fiscal nº 6.830, de 22 de setembro de 1980 já garante à CDA – Certidão de Dívida Ativa a presunção de certeza e liquidez até prova em contrário, uma verdadeira aberração, porque, inverte toda a lógica da hipossuficiência ao dar ao Príncipe[5]!
                        Ora, se não tem o sujeito passivo condições de garantir a execução será julgado à revelia? É este o Princípio Democrático? É evidente que tem ao seu dispor a “Exceção de Pré-Executividade”, mas, esta somente é admissível relativamente às matérias conhecíveis de ofício que não demandem dilação probatória, como lecionou o Ministro Sálvio de Figueiredo[6]:
“A propósito, em doutrina recente, Teresa Arruda Alvim Wambier e Luiz Rodrigues Wambier expressam os critérios exigidos para a aceitação da exceção de pré-executividade.
Vê-se, portanto, que o primeiro critério a autorizar que a matéria seja deduzida por meio de exceção ou objeção de pré-executividade é o de que se trate de matéria ligada à admissibilidade da execução, e seja, portanto, conhecível de ofício a qualquer tempo.
O segundo critério é o relativo à perceptibilidade do vício apontado. A necessidade de uma instrução trabalhosa e demorada, como regra, inviabiliza a discussão do defeito apontado no bojo do processo de execução, sob pena de que esse se desnature.
Na verdade, ambos os critérios devem estar presentes, para que se possa admitir a apresentação de exceção ou objeção de pré-executividade. (Processo de Execução e Assuntos Afins, Sobre a objeção de pré-executividade, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p.410).
                        A Exceção de Pré-Executividade vem regulada hoje, no novo CPC – Código de Processo Civil de que trata a Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 em seu artigo 803:
Art. 803          É nula a execução se:
I                      o título executivo extrajudicial não corresponder a obrigação certa, líquida e exigível;
                        Alcançamos aqui a amplitude do Princípio da ampla defesa? Evidente que não, porque, o constituinte garantiu “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes” porque, a exceção é somente um meio e, como no mandado de segurança inadmite a dilação probatória, então, a recepção da Lei nº 6.830, de 22 de setembro de 1980 não ocorreu na totalidade, na medida em que o seu artigo 16 restringe a ampla defesa, sendo incompatível com a literalidade do texto constitucional, podendo então ser aplicado o artigo 914 de que trata o novo Código de Processo Civil, de que trata a Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 aos processos pendentes de julgamento e aos futuros, isto, à partir da nova ordem constitucional, porque, o dispositivo já era previsto no diploma anterior.
Art. 914          O executado, independentemente de penhora, depósito ou caução, poderá se opor à execução por meio de embargos.
§ 1º                 Os embargos à execução serão distribuídos por dependência, autuados em apartado e instruídos com cópias das peças processuais relevantes, que poderão ser declaradas autênticas pelo próprio advogado, sob sua responsabilidade pessoal.
                        O artigo 2º da Lei de Introdução ao Código Civil – LICC prescreve que “A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior”. Portanto, revogação tácita ou indireta, embora não expressamente estabelecida pela nova lei.
                        Mesmo se tratando de lei especial, a incompatibilidade consiste na verificação do conflito residente entre o artigo 16 da Lei nº 6.830, de 22 de setembro de 1980 e o disposto no artigo 914 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015, prevalecendo este último na medida em que compatível com o texto constitucional: lex posterior derogat priori, considerando que aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes” de que trata o inciso LV do artigo 5º da Constituição Federal de 1988.
                        Não há necessidade de garantir execuções fiscais, porque, o sujeito em débito para com a Fazenda Pública já fica impossibilitado de dispor de seus bens simplesmente por não conseguir a devida “CND – Certidão Negativa de Débitos”.
                        No nosso entendimento, a ampla defesa é garantia constitucional elevada à categoria de cláusula pétrea e qualquer restrição a ela representa reduzir a ampla defesa em uma “defesa menos ampla”, em manifesta inconstitucionalidade, portanto, não teria sido recepcionada pela Carta Magna o § 1º do artigo 16 da Lei nº 6.830, de 22 de setembro de 1980, porque, toda restrição objetivando cercear o direito de contestação do pagador de impostos, exterioriza indiscutível atentado à cidadania e vocação totalitária.


[1]    Junior, Humberto Theodoro – Novo CPC Fundamentos e Sistematização – Rio de Janeiro – Forense – 2015.
[2]    Ver artigo 914, § 1º da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 Novo CPC.
[3]    Terminologia jurídica que indica condições técnicas para a proteção da parte mais fraca na relação da preponderância do mais forte. Normalmente aplicada em face do consumidor, mas, que também podem ser aplicadas em outras áreas.
[4] “No Brasil utiliza-se o substantivo ‘contribuinte’ para designar o pagador de impostos (arpinis purgantibus no Latim), enquanto o sujeito passivo recolhe o imposto por imposição do Estado e não por ‘contribuição’. Nos EUA utiliza-se o substantivo ‘taxpayer’ que significa ‘pagador de impostos’ que vai mais além, trata-se do cidadão detentor de direitos que financia a máquina pública e, não está contribuindo, mas, arcando com os custos do Estado”. Freitas, Rinaldo Maciel – Regulamento do IPI – Imposto sobre Produtos Industrializados Anotado e Comentado – MP Editora – 2008.
[5]    Maquiavel, Nicolo – O Príncipe – Trata-se de um dos tratados políticos mais fundamentais elaborados pelo pensamento humano, e que tem papel crucial na construção do conceito de Estado como modernamente conhecemos. No mesmo estilo do Institutio Principis Christiani de Erasmo de Roterdã: descreve as maneiras de conduzir-se nos negócios públicos internos e externos, e fundamentalmente, como conquistar e manter um principado.
[6]    Figueiredo, Sálvio – STJ – Superior Tribunal de Justiça – Recurso Especial – REsp nº 180.734.