O estorno de créditos do ICMS – Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços feitos pelos Estados como forma de combater a conhecida “Guerra Fiscal” partem de mera suposição e podem ser elididos por prova em contrário nos termos do parágrafo único do art. 204 do Código Tributário Nacional:
“no setor das infrações subjetivas, em que penetra o dolo ou a culpa na compostura do enunciado descritivo fato ilícito, a coisa se inverte, competindo ao Fisco, com toda a gama instrumental dos seus expedientes administrativos, exibir os fundamentos concretos que revelem a presença do dolo ou da culpa, como nexo entre a participação do agente e o resultado material que dessa forma se produziu. Os embaraços dessa comprovação, que nem sempre é fácil, transmudam-se para a atividade fiscalizadora da Administração, que terá a incumbência intransferível de evidenciar não só a materialidade do evento como, também, o elemento volitivo que propiciou ao infrator atingir seus fins contrários às disposições da ordem jurídica vigente” (Carvalho, Paulo de Barros – Direito Tributário, Linguagem e Método – página 954 – 3ª Edição – SP – Noeses – 2009)
Aqui reside outro impeditivo legal para o Estado. O art. 102 do Código Tributário Nacional dispõe que a legislação tributária vigora exclusivamente no território da entidade política que a emana e não há como um Estado exigir a apresentação de documentos de contribuintes doutros Estados Federados.
A lição de Roque Carrazza é no sentido de que, se o Estado de destino entende que os benefícios fiscais outorgados pelo Estado de origem a seus contribuintes infringem o art. 155, § 2º, XII, “g”, da Constituição Federal, por seu turno, não pode transformar o contribuinte do Estado de destino em sua longa manus, para que ele controle a constitucionalidade e a legalidade de benefícios fiscais:
“Em suma, problemas emergentes da chamada “guerra fiscal” entre as unidades federadas se resolvem na Suprema Corte, e não às expensas de contribuintes que adquiriram de boa-fé mercadorias e, ainda por cima, têm em mãos, documentando as operações mercantis realizadas, notas fiscais formalmente em ordem” (Carrazza, Roque Gomes – ICMS – 14ª Edição – página 364 – São Paulo – Malheiros – 2009).
Evidente que a concessão de benefícios fiscais não autorizados fere o art. 155, II, 2º, XII, “g” da CF de 1988, matéria pacífica no âmbito dos tribunais superiores, no entanto não autoriza seja ferido o art. 155, II, 2º, I do mesmo diploma.
É pacífico no STF – Supremo Tribunal Federal o entendimento de que Estados não podem conceder unilateralmente benefícios fiscais não autorizados pela maioria desses e do Distrito Federal, em respeito ao inciso XII, “g” do art. 155, II, § 2º da Constituição Federal, tendo julgado procedentes todas as Ações Declaratórias de Inconstitucionalidade neste sentido, no entanto, não há qualquer decisão, inclusive do STJ – Superior Tribunal de Justiça autorizando estorno de créditos, a não ser que estivessem amplamente demonstrados por provas inequívocas, porque igualmente feriria o art. 155, II, 2º, I do mesmo diploma, conforme regra-matriz do imposto:
“O primado da não-cumulatividade é uma determinação constitucional que deve ser cumprida, assim por aqueles que dela se beneficiam, como pelos próprios agentes da Administração Pública. E tanto é verdade, que a prática reiterada pela aplicação cotidiana do plexo de normas relativas ao ICM e ao IPI consagra a obrigatoriedade do funcionário, encarregado de apurar a quantia devida pelo ‘contribuinte’, de considerar-lhes os créditos, ainda que contra a sua vontade” (A Regra-Matriz do ICM, tese de livre-docência, apresentada na Faculdade de Direito da PUC/SP, 1981, inédita, página 377).
Neste sentido é que ousamos no livro “ICMS – Do Imposto sobre o Consumo à Guerra Fiscal” – São Paulo – Editora Fiscosoft – 2011 própria afirmar que a Lei Complementar nº 24, de 07 de janeiro de 1975 não foi recepcionada na sua totalidade, porque, seu art. 8º fere o princípio da não cumulatividade do imposto:
Processual Civil e Tributário. Recurso Especial. Alínea “a”. Violação a Convênio do ICMS Editado no âmbito do Confaz. Conceito de Lei Federal. 1. Os convênios do ICMS, editados pelo CONFAZ nos termos da LC 24/75, via de regra, não se incluem no conceito de “lei federal”, para fins de interposição de recurso especial fundado na alínea “a” do inciso III do art. 105 da CF/88. 2. Exceção é o Convênio ICMS n.º 66/88 que teve origem na autorização dada pelo art. 34, § 8º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias - ADCT para que os Estados regulassem provisoriamente o ICMS, nos termos da LC 24/75, até que o Congresso Nacional editasse a lei complementar desse imposto. 3. Esse Convênio, até a edição da LC 87/96, serviu como regra geral de caráter nacional para o ICMS, extraindo seu fundamento de validade diretamente do Texto Constitucional, o que não se observa relativamente aos demais convênios do Confaz. 4. Recurso especial não conhecido (STJ – Superior Tribunal de Justiça – REsp 1.137.441/MG. – Processo nº 2009/0081861-6 – Primeira Seção - Relatora: Ministra Eliana Calmon - 09/06/2010).
Sendo este o mesmo entendimento do professor Roque Antônio Carrazza:
“Tal ‘glosa de créditos’ ou, em termos mais técnicos, ‘anulação dos créditos relativos às operações mercantis anteriormente realizadas’, absolutamente não se sustenta, ao lume do princípio da não-cumulatividade do ICMS. Também não encontra amparo no art. 8º, da Lei Complementar 24/1975, que, por ir além dos ditames do art. 155, § 2º, XII, ‘g’, da Carta de 1988, não passou pelo fenômeno da recepção” (Carrazza, Roque Antônio - ICMS - 15ª Edição - Malheiros – 2011).
Este foi o entendimento da 1ª Seção do STJ – Superior Tribunal de Justiça no RMS 38041 que entendeu que o mecanismo de reação à guerra fiscal por Minas Gerais não é legítimo e, estamos cansados de fazer esta sustentação junto ao Conselho de Contribuintes do Estado. Concluiu a 1ª Seção do STJ que, em operações interestaduais, o valor efetivamente recolhido na operação anterior de que tratam os artigos 19 e 20 da Lei Complementar nº 87, de 13 de setembro de 1996, não pode levar em consideração elementos extrínsecos à operação anterior, equivalendo este valor ao imposto constante da nota fiscal apresentada pelo adquirente da mercadoria.
O art. 8º da Lei Complementar nº 24, de 07 de janeiro de 1975, conflita com os artigos 19 e 20 da Lei nº 87/1996 considerando que o artigo 2º da Lei de Introdução ao Código Civil (LICC) prescreve que “A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior”. Portanto, revogação tácita ou indireta, embora não expressamente estabelecida pela nova lei, portanto, a Resolução 3.166/2001 na parte que veda apropriação de créditos é inconstitucional:
Ação declaratória - ICMS - Resolução nº 3.166/2001 - vedação de apropriação de crédito de ICMS, nas operações interestaduais com incentivos fiscais - princípio da não-cumulatividade - Recurso Provido. As limitações impostas ao princípio da não-cumulatividade pelas leis complementares, convênios e regulamentos são inconstitucionais; da Carta Magna constam apenas como exceção à tal princípio a isenção e a não-incidência, não podendo a legislação infraconstitucionais criar outras. O princípio da não-cumulatividade consiste no realizar o abatimento, na operação posterior, do imposto incidente e pago na operação anterior. CF, art. 155, § 2º, I. Impossibilidade da vedação do crédito em razão da redução da base de cálculo do imposto. II. RE provido. Não provimento do agravo - RE 355422 AgR/MG, Ministro Carlos Velloso, DJ 28-10-2004 (TJMG - Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais - Apelação Cível nº 1.0024.05.773735-5/001 - Relator: Desembargador Alvim Soares - 06/02/2007).
Essa incompatibilidade consiste justamente na verificação do conflito residente entre o artigo 8º da Lei nº 24/75 e os dispostos nos artigos 19 e 20 da Lei Complementar nº 87, de 13 de setembro de 1996, prevalecendo esta última na medida em que compatível com o texto constitucional: lex posterior derogat priori. Não seria razoável conceber a aplicação simultânea de duas leis contraditórias :
Art. 20 Para a compensação a que se refere o artigo anterior, é assegurado ao sujeito passivo o direito de creditar-se do imposto anteriormente cobrado em operações de que tenha resultado a entrada de mercadoria, real ou simbólica, no estabelecimento, inclusive a destinada ao seu uso ou consumo ou ao ativo permanente, ou o recebimento de serviços de transporte interestadual e intermunicipal ou de comunicação.
A não-cumulatividade do imposto é linear, ensejando a observação de créditos diante de operações sucessivas. Determinação constitucional que deve ser cumprida pela Administração Pública, observando a regra constitucional nos termos do inciso I, do§ 2º, do artigo 155 da Constituição Federal, não podendo a lei limitar a não-cumulatividade do imposto:
Agravo Regimental. Tributário. ICMS destacado nas notas fiscais emitidas pela fornecedora. Direito ao creditamento. Princípio da não-cumulatividade. Demanda Declaratória que Reconhecera a não Incidência do ICMS sobre os Serviços de composição gráfica nas embalagens personalizadas. Estorno dos Créditos pelos Adquirentes das Mercadorias. Impossibilidade. 1. O direito de crédito do contribuinte não decorre da regra-matriz de incidência tributária do ICMS, mas da eficácia legal da norma constitucional que prevê o próprio direito ao abatimento (regra-matriz de direito ao crédito), formalizando-se com os atos praticados pelo contribuinte (norma individual e concreta) e homologados tácita ou expressamente pela autoridade fiscal. Essa norma constitucional é autônoma em relação à regra-matriz de incidência tributária, razão pela qual o direito ao crédito nada tem a ver com o pagamento do tributo devido na operação anterior. 2. Deveras, o direito ao creditamento do ICMS tem assento no princípio da não-cumulatividade, sendo assegurado por expressa disposição constitucional, verbis: “Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre: (...) II - operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior; (...) § 2º O imposto previsto no inciso II atenderá ao seguinte: I - será não-cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação relativa à circulação de mercadorias ou prestação de serviços com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou outro Estado ou pelo Distrito Federal; (...)” (grifo nosso) 3. O termo “cobrado” deve ser, então, entendido como “apurado”, que não se traduz em valor em dinheiro, porquanto a compensação se dá entre operações de débito (obrigação tributária) e crédito (direito ao crédito). Por essa razão, o direito de crédito é uma moeda escritural, cuja função precípua é servir como moeda de pagamento parcial de impostos indiretos, orientados pelo princípio da não-cumulatividade. 4. Destarte, o direito à compensação consubstancia um direito subjetivo do contribuinte, que não pode ser sequer restringido, senão pela própria Constituição Federal. Evidenciado resulta que a norma constitucional definiu integralmente a forma pela qual se daria a não-cumulatividade do ICMS, deixando patente que somente nos casos de isenção e não-incidência não haveria crédito para compensação com o montante devido nas operações seguintes ou exsurgiria a anulação do crédito relativo às operações anteriores (artigo 155, § 2º, II). 5. Ressoa inequívoco, portanto, que o direito de abatimento, quando presentes os requisitos constitucionais, é norma cogente, oponível ao Estado ou ao Distrito Federal. A seu turno, os sucessivos contribuintes devem, para efeito de calcular o imposto devido pela operação de saída da mercadoria do seu estabelecimento, abater o que antes e, a título idêntico, dever-se-ia ter pago, a fim de evitar a oneração em cascata do objeto tributado, dando, assim, plena eficácia à norma constitucional veiculadora do princípio da não-cumulatividade. Percebe-se, assim, que o creditamento não é mera faculdade do contribuinte, mas dever para com o ordenamento jurídico objetivo, não lhe sendo possível renunciar ao lançamento do crédito do imposto, mesmo que tal prática lhe fosse conveniente. Sequer a própria lei poderia autorizá-lo a tanto, sob pena de patente inconstitucionalidade. 6. Nesse diapasão, não se afigura legítima a exigência de estorno dos créditos de ICMS, porquanto a empresa agiu no estrito cumprimento da regra-matriz de direito ao crédito, uma vez ter-lhe sido regularmente repassado o tributo pela empresa fornecedora quando da aquisição das embalagens personalizadas, consoante destacado nas notas fiscais - documentos idôneos para tanto -, gerando a presunção de incidência da exação na operação anterior. 7. Deveras, a relação fiscal se estabelece entre o sujeito com competência tributária e o contribuinte, de sorte que o eventual crédito do fisco em relação ao primeiro contribuinte do imposto não pode ser exigido de outrem, o qual pela lei não é seu substituto tributário nem sucessor. In casu, a recorrente pagou o tributo e o primeiro contribuinte depositou-o, levantando-o após, com a anuência do Estado, que não pode pretender reavê-lo de quem implementou o seu dever (Precedente da Primeira Turma: REsp 782987/RS, Rel. Ministro Luiz Fux, julgado em 13.03.2007, DJ 09.04.2007). 8. Agravo regimental desprovido (STJ - Superior Tribunal de Justiça - AGRESP - Agravo Regimental no Recurso Especial - 1065234 - Processo nº AGRESP 200801283783 - Primeira Turma - Relator: Ministro Luiz Fux - 15/06/2010).
Considerando a taxatividade da Resolução nº 3166/2001, e a não-cumulatividade, a Fazenda mineira não pode proceder ao estorno, conforme entende Roque Antônio Carrazza:
“Retomando o exemplo, o adquirente tem jus ao aproveitamento integral do crédito, se a nota fiscal destaca o ‘valor cheio’ do imposto (12%); mesmo que o fornecedor da mercadoria tenha sido contemplado por benefício (no caso, um fictício crédito presumido de 8%), que não encontra respaldo em convênio interestadual” (Carrazza, Roque Antônio - ICMS - 15ª Edição - Malheiros – 2011).
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