Na ordem
jurídica nada mais sagrado existe do que o direito de defesa, sendo seu
exercício pleno condição até para a validade da condenação. Consiste ele na
obrigatoriedade de se assegurar ao suposto infrator à concreta ciência das cominações
que lhe são atribuídas, bem como de tornar efetiva a possibilidade de
contestá-las, uma a uma, condição elevada à cláusula pétrea nos termos dos
incisos XXXV e LV da Constituição Federal de 1988.
Como a liberdade e a
igualdade são valores fundamentais em nossa sociedade, após a Constituição
Federal de 1988, impõe-se que, em qualquer espécie de julgamento, a ampla
defesa e igualdade são princípios que constituem fundamentos de legalidade do
veredicto a ser proferido, o que inclui a execução fiscal, razão pela qual
entendemos que o artigo 16 da Lei nº 6.830, de 22 de setembro
de 1980 não foi recepcionado pela nova ordem constitucional, o que o
espírito da Lei nº 13.105, de 16 de março
de 2015, porque, no
conceito de contraditório repousa a segurança jurídica como ensina Humberto
Theodoro Junior ([1]), considerando que o principal fundamento
da comparticipação no processo é o contraditório que garante a sua fluência
normal e a não surpresa:
“Nesse sentido, o princípio do contraditório receberia
uma nova significação, passando a ser entendido como direito de participação na construção do provimento, sob a forma de uma
garantia processual de influência e não surpresa para a formação das decisões”.
À
época o legislador ordinário deu à CDA – Certidão de Dívida Ativa um status, uma garantia que não mais lhe pertence,
porque, “para instituir um
Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e
individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a
igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna,
pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na
ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias”, de que trata o preâmbulo da Constituição
Federal é necessário paridade dialética e legal.
Instrumentos consagrados
pela ordem constitucional e elevados à dignidade de norma reitora que assegura
o contraditório não só nos julgamentos criminais, mas, evidente que também em
outras esferas, inclusive nas ações de Execução Fiscal promovidas pelo Estado,
de forma que, a não se exorbitarem os
privilégios de que gozam os créditos fazendários, a Súmula Vinculante nº 28 já estabeleceu o consenso de que “qualquer
depósito obsta o acesso à justiça”, tendo prevalecido à proposta
de que ([2]):
·
É inconstitucional a exigência de depósito
prévio como requisito de admissibilidade de ação judicial na qual se pretenda
discutir a exigibilidade de crédito tributário.
Há
no direito brasileiro, nas esferas do direito penal; trabalhista; consumidor e tributário
consecutivamente quatro hipóteses onde o agente é protegido em razão de
hipossuficiência ([3]): no direito
penal o “in dubio pro reo”; no
direito trabalhista o “in dubio pro
miseris”; no direito do consumidor o “inverso
onus evidential”, conforme o inciso VIII do artigo 6º da Lei nº 8.078, de 11 de
setembro de 1990, todas regularmente aplicadas pelos Tribunais. No
direito tributário teríamos o princípio do “in
dubio pro arpinis purgantibus” que remete ao artigo 112 da Lei nº 5.172, de 25 de outubro
de 1966, onde, em caso de dúvida interpretar-se-ia de forma mais
favorável ao taxpayer[4], mas, a Lei de Execução Fiscal nº 6.830, de 22 de setembro de
1980 já garante à CDA – Certidão de Dívida Ativa a presunção de
certeza e liquidez até prova em contrário, uma verdadeira aberração, porque,
inverte toda a lógica da hipossuficiência ao dar ao Príncipe[5]!
Ora,
se não tem o sujeito passivo condições de garantir a execução será julgado à
revelia? É este o Princípio Democrático? É evidente que tem ao seu dispor a “Exceção
de Pré-Executividade”, mas, esta somente é admissível relativamente às matérias
conhecíveis de ofício que não demandem dilação probatória, como lecionou o
Ministro Sálvio de Figueiredo[6]:
“A propósito, em doutrina
recente, Teresa Arruda Alvim Wambier e Luiz Rodrigues Wambier expressam os
critérios exigidos para a aceitação da exceção de pré-executividade.
Vê-se, portanto, que o primeiro
critério a autorizar que a matéria seja deduzida por meio de exceção ou objeção
de pré-executividade é o de que se trate de matéria ligada à admissibilidade da
execução, e seja, portanto, conhecível de ofício a qualquer tempo.
O segundo critério é o relativo à
perceptibilidade do vício apontado. A necessidade de uma instrução trabalhosa e
demorada, como regra, inviabiliza a discussão do defeito apontado no bojo do
processo de execução, sob pena de que esse se desnature.
Na verdade, ambos os critérios
devem estar presentes, para que se possa admitir a apresentação de exceção ou
objeção de pré-executividade. (Processo
de Execução e Assuntos Afins, Sobre a objeção de pré-executividade, São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1998, p.410).
A
Exceção de Pré-Executividade vem regulada hoje, no novo CPC – Código de
Processo Civil de que trata a Lei nº 13.105, de 16 de março
de 2015 em seu artigo 803:
Art. 803 É nula
a execução se:
I o
título executivo extrajudicial não corresponder a obrigação certa, líquida e
exigível;
Alcançamos aqui a
amplitude do Princípio da ampla defesa? Evidente que não, porque, o
constituinte garantiu “aos litigantes, em processo judicial ou
administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla
defesa, com os meios e recursos a ela inerentes” porque, a exceção é
somente um meio e, como no mandado de segurança inadmite a dilação probatória,
então, a recepção da Lei nº 6.830, de 22 de setembro de
1980 não ocorreu na totalidade, na medida em que o seu artigo 16
restringe a ampla defesa, sendo incompatível com a literalidade do texto
constitucional, podendo então ser aplicado o artigo 914 de que trata o novo
Código de Processo Civil, de que trata a Lei nº 13.105, de 16 de março
de 2015 aos processos pendentes de julgamento e aos futuros, isto, à
partir da nova ordem constitucional, porque, o dispositivo já era previsto no diploma
anterior.
Art.
914 O
executado, independentemente de penhora, depósito ou caução, poderá se opor à
execução por meio de embargos.
§
1º Os
embargos à execução serão distribuídos por dependência, autuados em apartado e
instruídos com cópias das peças processuais relevantes, que poderão ser
declaradas autênticas pelo próprio advogado, sob sua responsabilidade pessoal.
O artigo 2º da Lei de
Introdução ao Código Civil – LICC prescreve que “A lei posterior revoga a
anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou
quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior”. Portanto,
revogação tácita ou indireta, embora não expressamente estabelecida pela nova
lei.
Mesmo
se tratando de lei especial, a incompatibilidade consiste na verificação
do conflito residente entre o artigo 16 da Lei nº 6.830, de 22 de setembro de
1980 e o disposto no artigo 914 da Lei nº 13.105, de 16 de março
de 2015, prevalecendo este último na medida em que compatível com o texto
constitucional: lex posterior derogat priori, considerando que “aos
litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são
assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela
inerentes” de que trata o inciso LV do artigo 5º da Constituição
Federal de 1988.
Não há
necessidade de garantir execuções fiscais, porque, o sujeito em débito para com
a Fazenda Pública já fica impossibilitado de dispor de seus bens simplesmente
por não conseguir a devida “CND – Certidão Negativa de Débitos”.
No nosso entendimento, a
ampla defesa é garantia constitucional elevada à categoria de cláusula pétrea e
qualquer restrição a ela representa reduzir a ampla defesa em uma “defesa
menos ampla”, em manifesta inconstitucionalidade, portanto, não teria
sido recepcionada pela Carta Magna o § 1º do artigo 16 da Lei nº 6.830, de 22 de
setembro de 1980, porque, toda restrição objetivando cercear o
direito de contestação do pagador de impostos, exterioriza indiscutível
atentado à cidadania e vocação totalitária.
[1] Junior,
Humberto Theodoro – Novo CPC Fundamentos e Sistematização – Rio de Janeiro –
Forense – 2015.
[2] Ver artigo 914, § 1º da Lei nº 13.105, de 16 de março
de 2015 Novo CPC.
[3] Terminologia
jurídica que indica condições técnicas para a proteção da parte mais fraca na
relação da preponderância do mais forte. Normalmente aplicada em face do
consumidor, mas, que também podem ser aplicadas em outras áreas.
[4] “No Brasil utiliza-se o substantivo ‘contribuinte’
para designar o pagador de impostos (arpinis
purgantibus no Latim), enquanto o sujeito passivo recolhe o imposto por
imposição do Estado e não por ‘contribuição’. Nos EUA utiliza-se o substantivo
‘taxpayer’ que significa ‘pagador de
impostos’ que vai mais além, trata-se do cidadão detentor de direitos que
financia a máquina pública e, não está contribuindo, mas, arcando com os custos
do Estado”. Freitas, Rinaldo Maciel – Regulamento do IPI – Imposto
sobre Produtos Industrializados Anotado e Comentado – MP Editora – 2008.
[5] Maquiavel, Nicolo – O Príncipe – Trata-se
de um dos tratados políticos mais fundamentais elaborados pelo pensamento
humano, e que tem papel crucial na construção do conceito de Estado como
modernamente conhecemos. No mesmo estilo do Institutio Principis Christiani
de Erasmo de Roterdã: descreve as maneiras de conduzir-se nos
negócios públicos internos e externos, e fundamentalmente, como conquistar e
manter um principado.
[6] Figueiredo, Sálvio – STJ – Superior Tribunal
de Justiça – Recurso Especial – REsp nº 180.734.
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